Ateísmo e o legado cultural - Por Paulo Dias

O mestre em crítica cultural traz em sua coluna semanal uma importante reflexão acerca da relação entre a religião e a cultura

Por Paulo Dias,
Jornalista Drt-BA 1903

A relação entre religião e cultura é inequívoca e óbvia. O legado cultural depende muito da crença na imortalidade da alma e na existência de um mundo espiritual. Na medida em que o ateísmo avança, creio que estes laços se desfazem ou, no mínimo, enfraquecem. Não falo da concepção individual e minoritária do ateísmo, mas quando ele ganha representatividade social relevante. Ser materialista não quer dizer ser ateu, mas é uma forma de desconexão com o mundo espiritual que pode lhe tornar susceptível ao ateísmo, como se o espiritualista estivesse quase que imune a tais ideias.

Construir um legado cultural significa estar interessado no destino da humanidade. Certas culturas não tinham claramente uma noção de futuro, viver o presente com intensidade já significava preparar o futuro, mas também os hábitos mais simples do cotidiano tinham uma explicação ou, melhor, um sentido espiritual. A ação cotidiana não era materialista, estava vinculada a sua vida futura no pós-morte. Isto se torna bastante incorporado e intuitivo a ponto, eu acredito, que mesmo os ateus de todos os tempos tivessem este vínculo com a espiritualidade, mesmo o negando conscientemente.

A noção de legado vem com a noção de herança e com a noção de que a geração presente recebeu algo da geração anterior e que deixar algo para a posterior, seja acúmulo de bens privados ou coletivos, é algo como um dever espiritual. Acho que isto serve para todos os povos do mundo e inclui-se posteriormente ou concomitantemente os bens espirituais. Veja como a crença religiosa de fato construiu e fortaleceu a noção de legado. Hoje, com o materialismo, com a perda do interesse na procriação, as mentes estão abertas para o ateísmo, que de fato se prolifera no mundo, sobretudo nas nações desenvolvidas. Existe um proto-ateísmo, como uma dúvida persistente: “será que existe vida após a morte?”. Marx era materialista e ateu, mas se esforçou por deixar um legado; acho que um resquício da crença na imortalidade sobreviveu dentro dele, lá nos recônditos do inconsciente.

O ateísmo coletivo, sem aqui fazer qualquer juízo de valor, leva ao comportamento hedonista: tirar da vida o máximo de prazer. Isto também enfraquece a fraternidade e a solidariedade; em seu lugar criam-se acordos tácitos para a obtenção do prazer. Nada contra o prazer, mas ao fato de ele se tornar perigosamente e excessivamente carnal. Freud deixa claro que toda produção artística vem da sublimação; parte da libido é desviada para a criação artística. O mesmo acontece com a ciência e a religião.

Se não estamos dispostos a sublimar, tampouco estaremos empenhados em deixar um legado, especialmente em obras que só vão frutificar após um período longo, superior a várias gerações, como fez Moisés. Muito distantes também ficam o martírio, a participação em guerras etc. Como os cristãos que morreram no coliseu para manter viva a fé no Cristo, morreram para manter um legado. Com o ateísmo coletivo, surge o imediatismo que é o anti-legado, o oposto da noção de legado.

A ilusão ateia

A ideia do ateísmo é mais cruel do que imagina o próprio ateu. Morrer repentinamente é ver o mar da consciência ser tragado como a água em uma pia. Morrer para o ateu não é encontrar com as trevas que sucedem a toda uma existência, só seria assim se após a morte algum fio ou sopro de consciência sobrevivesse. No fundo, acho que todo ateu pensa que algum fio de consciência sobrevém à morte para dizer para si mesmo: “tá vendo que tudo acaba”.

Na morte ateia real, da qual os próprios ateus não se dão conta, não haverá consciência alguma, por isto também, nenhuma lembrança de que se viveu. Se acha que alguma coisa resta, que haverá consciência até da própria finitude, se pensa que terá consciência da finitude é porque não se é totalmente ateu e um resquício da crença primitiva na vida espiritual permanece neste que bate no peito e se diz: “sou ateu”. Deus só existe e é bom com a vida após a morte ou, ao menos, a permanência de alguma forma de consciência tão elevada que não somos capazes de imaginá-la. – Deus é bom, diz um. – O tempo todo, responde o outro.

Foto: Divulgação / Internet 

Por: Paulo Dias - Colunista do Portal Pereira News

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